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Acordos nas Sombras

Quando fecho os portões da igreja atrás de mim, faço questão de que as enormes portas batam e o som estrondoso ecoe por todo corpo da paróquia. Sei que requisitei o encontro na igreja da Matriz em botafogo, um território neutro, quase familiar - ainda mais ultimamente.


Mas não, tinha que ser na porra do centro da cidade. Tudo é no centro da cidade. Na maldita da Nossa Senhora da Candelária. Bem, ao menos é um local construído em devoções românticas e essa mínima tangente melhora um decibel do meu humor.


Nutro uma relação nostálgica com os ambientes católicos, me lembram do tempo de vivo, quando fui devoto á todas as palavras da Santíssima Trindade e o segundo testamento em troca de um sentido na vida. Pois bem, não estou mais vivo.


Mas estes lugares se recusam a me dar calafrios. A gélida atmosfera opressiva de uma arquitetura soberana me enche de propósito, quero que todos reconheçam o poder de minha atual devoção. Passei anos contemplando a história e moral dos outros, de apóstolos que se provaram em nome de um Deus, hoje, meu sangue é ungido em promessas de entidades tão poderosas, que teriam elas mesmas desafiado Deus e seus criadores. 


Junto minhas mãos e entrelaço os dedos, abaixando a cabeça de leve e fazendo uma reverência à lua, nesta bela noite de terça-feira. Desde que Pickett foi morto, tenho alimentado uma fantasia bem particular sobre o inferno.


Isso acalenta minha eternidade.


ー Ainda preso à esses rituais?


Abro os olhos e contenho minhas presas. Apenas o som de sua voz já me tira do sério, não há uma Primigênie que eu deteste mais nesse momento que:


ーCamilla. 


Em seus olhos eu vejo sempre o abismo imprevisível de seu espírito. Não que seu clã já não seja famoso por delírios, mas ela sempre tem um pitaco a mais sobre como conduzo minha existência. Ainda assim, foi ela que me convidou para este encontro.


Ela recolhe as pernas, deixando as sandálias no chão e coloca um dos pés na cadeira de almofada vermelha, enquanto o outro pende na altura, descalço. Claramente não é uma cadeira para pôr os pés, mas não é minha função educar os mais velhos em seus maus hábitos. Seu vestido também não é muito apropriado para nosso encontro, é informal, Camilla sempre se veste como menina moça, com alças finas e tecido florido. 


ーMatheus. ー Ela responde.


Odeio a forma como meu nome sai de sua boca. Odeio a forma como seus olhos me encaram, como se esperasse algo de mim. Odeio ter que vir ao centro da cidade sem uma declaração clara sobre o tópico deste encontro. 


ー Boa noite, querida. Recebi sua mensagem e vim o mais rápido que pude. Não é sempre que uma Primigênie faz um requerimento tão direto. Qual o propósito do nosso encontro?


Ela encara os pés, dobra os dedos pintados na almofada e brinca com as unhas enquanto falo. Alguns imbecis acham seu jeito distraído adorável, mas sei muito bem que está debochando de mim, Camilla só encara as unhas dos pés quando está de má vontade, ou quando acha que a outra pessoa mente.


ー Quero que persuada Mathias a arquivar as investigações no Cacuia. ー Ela fala, sem realmente levantar o rosto para me encarar.


É sempre assim, sem nem um “boa noite, Matheus, como que tem passado?” ou “que bom que pode vir esta noite, mesmo que meu convite tenha sido repentino”! Como se eu fosse um empregado dela.

 

ー Por que eu faria isso? ー Cruzo meus braços, seu status não me assusta.


Ela levanta os olhos para me encarar, seus longos cílios batem algumas vezes, em piscadas lentas. Sei que ela tem seus recursos na ponta da língua, mas deixo fazer o teatro de que está pensando no que eu disse.


ー Não é permitido muitos membros do Clã da Noite em uma cidade, e tem surgido uma razoável quantia destes ultimamente. ー Ela comenta.


ー E? Não parece problema meu.


ー Não diretamente. Com uma sugestão de três membros das sombras por torre de marfim, um a menos ou a mais não atrairia um Justicar ou causaria uma repentina caçada, mas o dobro do número sugerido poderia sim engatilhar uma investigação sobre quem são e quais suas utilidades para a corte. E se, devido às suas influências com o Príncipe, tudo fosse levado diplomaticamente à uma mesa redonda, acha que o Padre Blanche apoiaria sua escolha de membros a manter o pescoço?


Ela nem pisca enquanto me ameaça. 


O número crescente de LaSombras realmente é um problema, o estigma em cima do clã ainda é muito recente e mesmo com a regra de uma cabeça por outra, parece que está saindo vagabundo do esgoto para a corte. Eles não entendem que precisam cavar influência na maciota, malditos.


ー Aham ー provoco, esperando que ela me entregue um pouco mais.


Ela me encara por alguns segundos, antes de encostar o queixo sob os joelhos.


ー Eu posso te ajudar a proteger Elisa.


ー Mandou seus ratos me seguir? ー Rosno quando ela profere o nome de Elisa.


ー Não foi tão difícil assim. 


ー Está me chantageando? ー Questiono indignado, sentindo uma pontada furiosa culminar de dentro do meu estômago. Não posso xingá-la, ou perder a linha, seus dons são inevitavelmente mais poderosos que os meus. Sei disso racionalmente.


ー Estou fazendo uma proposta.


ー “Faça o que mando e não começo uma Caçada de Sangue em seus semelhantes”, não parece uma proposta muito diplomática.


ー É a proposta que tenho.


ー Não me ameace, eu não lido bem com ameaças. ーMe descontrolo um bocado, elevando a voz, mas estou sendo verdadeiro, detesto ser parte do jogo dos outros. Remédio para maluco é um maluco e meio.


ー Sabe muito bem como funciona a diplomacia desta Corte. O mais forte é mais influente, e o mais influente exerce sua influência sobre o mais fraco. Achei que ficaria à vontade com minha emulação do método do seu tão querido Príncipe, Matheus Silva.


ー Homofóbica. ー Respondo sem pensar, em uma maneira de tentar silenciá-la. E antes que eu fale o que realmente se passa na minha cabeça que é como ela não tem o menor direito de proferir meu sobrenome, ou o nome de Vossa Majestade, depois de ser absolutamente o MAIOR obstáculo dessa Camarilla.


A encaro com ferocidade, e ela parece um pouco confusa.


Não gosto de ser ameaçado.


ー Não tenho interesse em ferir seus amigos, não desejo mal á Elisa. E não quero ameaçá-lo, não suportaria. Não por respeito às suas emoções, mas porque ameaçá-lo significa que haveríamos de nos encontrar corriqueiramente para que eu pudesse exercer meu poder sobre ti. E não suporto o som de sua voz, já tenho muito clara a imagem sua como uma gata no cio atrás do Príncipe, enchendo seus trajes brancos de pelos pretos. 


Caralho eu odeio essa… ridícula! Vou entrar em compulsão. Vou DELIBERADAMENTE entrar em compulsão e seja o que Cain quiser.


ー Mas tenho mais desprezo por Eduardo Blanche do que por ti, em todo seu mal gosto. Nunca me fez mal, objetivamente, e tampouco acho que pretende fazer. Seu namorado não é meu fã, mas não vim até ti por amizade, vim por que confio em sua palavra sobre suas promessas. É um homem de fidelidade óbvia, laços longos e duradouros, vejo prosperidade em uma parceria.


Seus olhos encaram os meus e sua voz doce ecoa rígida por um momento.


ー Confio em sua palavra, independente de seus princípios.

Me acalmo. Ela chamou Kauã de meu namorado e achei bonitinho.


ー Por que acha que posso influenciar o Executor, ele é cabeça duríssima.


ー É ótimo em criar intrigas e falsas emergências. Já o vi mudar a prioridade de várias pautas pra seus próprios interesses. Parece que baila com a mentira, sem vesti-la. Nunca vou entender seu coração, mas reconheço sua arte.


Acho que ela está me chamando de falso.


ー Vou invisibilizar a passagem de seus protegidos do meu território.


ー Não é suficiente.


Posso ter sido abraçado muito novo, mas tenho mais tempo neste mundo como Membro do que como qualquer outra coisa. Uma oportunidade como essa só escapa das mãos dos jogadores de curto prazo. Há muito valor nos recursos alheios, muitas vezes mais do que até em seus talentos.


Ela levanta o rosto. Não sei se ela sabe o que quero e por isso hesita, ou se de fato estou me achando tanto que pinto uma pincelada de medo em sua expressão.


ー Quero acesso ao Jardim, acompanhado.


ー Não  há nada lá para você.


ー É por isso que quer Mathias e seus farejadores longe, não é? Estão perto demais do seu parquinho de diversão, a presença deles pode corromper o prestígio do local?


Seus olhos tornam-se intensos, ela abre a boca, mas antes que possa falar, estendo a mão, arriscando perdê-la.


ー Não ouse usar sua voz, quando veio à mim pedir ajuda. Eu vou tirar os farejadores do seu Jardim, e não pretendo cavar nenhum tesouro do local. ー Ela parece me ouvir ー Quero apenas circundar o perímetro, sentir o que estão sentindo e tirar minhas conclusões sobre a intensidade de carga. Prometo não denegrir o local de forma alguma, tampouco reportar qualquer encontro que posso ter lá.


Camilla desdobra as pernas e veste as sandálias, ficando em pé na minha frente. Seus olhos chegam tão perto dos meus que se respirássemos entrecruzaríamos os hálitos.


ー Tire-os de lá o quanto antes e posso mandar uma Carniçal acompanhá-lo, superficialmente. Toque em um ramo de flor de maneira inapropriada e farei com que use seus dons de premonição fatal em todos que respirarem perto de ti.


Posso sentir o aroma cítrico de seus cabelos enquanto me ameaça. Uma breve estática pulsa por meu corpo, as noites estavam chatas e agora tenho um encontro com uma aventura emocionante pertinho de casa. O Príncipe vai ficar tão orgulhoso de mim ao saber que posso circular pelo fabuloso Jardim “secreto” da Primigênie Lunática.


Estendo a mão para que ela aperte.

ー Acredito que tenhamos um acordo, minha querida. Nada como uma clara e límpida diplomacia.




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