Crônica da Mansão Dunsirn
- Michelle Vasconcellos

- 1 de dez.
- 4 min de leitura
– por João do Rio, espectro
“Há prazeres que só a morte compreende.
E há amores que nem a eternidade apaga.”
— João do Rio (fantasma e cronista da noite)
Depois de tanto tempo morto, e há que se reconhecer que morto é um estado de tédio monumental, redescobri certo prazer em atravessar a mortalha e visitar a Mansão Dunsirn. Talvez porque ali, entre cortinas pesadas e móveis que rangem sob o peso dos séculos, algo ainda pulsa: um sopro de vida ou de outra coisa mais perigosa.
Permita-me, leitor, apresentar-me: chamavam-me João do Rio, cronista das ruas e das almas. Hoje, do lado de cá, escrevo sobre o que os vivos preferem não dizer e o que os mortos jamais esquecem.
A mansão pertence à senhora Talita Dunsirn, cuja presença é uma arte em si: fria, precisa, envolta num perfume que mistura ferro, flor e mistério. Há algo na sua maneira de existir que perturba o ar, como se a própria morte, ao passar por ela, tivesse se deixado seduzir e ficado por perto, dócil.
Ao seu lado vive Sansão Lazuli, homem de pele que guarda o calor da terra e um olhar que denuncia, sob aparente disciplina, uma centelha de rebeldia. Entre ambos, há um pacto silencioso, um teatro de vontades.
Ela reina com gestos que dispensam palavras, e ele obedece com a insolência dos que sabem exatamente até onde podem arder. É um jogo de espelhos: a mão que comanda também deseja, e a que se submete guarda um poder secreto.
A noite chega à Mansão Dunsirn como quem pede licença. O vento atravessa as cortinas com uma doçura cúmplice. Eu, este cronista já liberto do corpo, observo o que poucos vivos ousariam ver.
No centro da sala, Talita surge como escultura viva, trajando um vestido de couro negro que reflete o lume azul das velas dispostas. À frente dela, Sansão Lazuli, vestindo apenas uma calça preta justa com as laterais cruzadas em X, que revelam a pele negra e as marcas de noites anteriores no peitoril e nas costas, está de joelhos. O corpo dele é altar, e ela é sacerdotisa.
O toque frio de Talita percorre o corpo quente dele até o som seco do clique: o cinto de castidade se fecha em torno do desejo, como um voto silencioso.
— Agora você é só meu — diz ela, num sussurro que pesa como sentença.
Sansão sorri, insolente, vivo. Ela o encara. Ele ousa manter o olhar. Então vem a mordida, cruel e bela. As presas rasgam a pele, e o sangue brota quente, uma oferenda. A dor o atravessa como lâmina, o prazer o consome logo em seguida. O corpo treme, os lábios arquejam, o riso e o gemido se confundem.
Ela bebe devagar, bebe poder. Quando afasta o rosto, os lábios vermelhos e o olhar calmo anunciam: ela domina. Mas ele, oh, ele sorri:
— Sempre, minha Senhora… — continua sussurrando — mas um dia será a minha vez.
O sorriso dela é o de quem reconhece a provocação e a deseja. Sem se deter, Talita fez um gesto quase imperceptível, e Sansão a seguiu até o Opala preto. O motor ronronou como extensão do pacto: comando e rendição, poder e entrega, levando-os pela cidade que não dorme, sob o olhar atento de um cronista invisível. Cada curva da Niemeyer era deslizar de luzes e sombras, marcada pela serenidade de Talita ao volante, enquanto o mar refletia as luzes distantes e o vento que entrava pelas janelas abertas parecia cúmplice do pacto silencioso entre eles.
Chegaram a um hotel reservado em São Conrado, luxuoso e proibido. Lá dentro, o ar era saturado por veludo, látex e velas azuis. A música grave vibrava nas paredes como coração subterrâneo, anunciando que ali dentro, sob aquela luz azulada, o mundo ordinário ficava do lado de fora.
Quando Talita entra, todos se curvam, não em gesto, mas em instinto. Ela sobe ao palco, e Sansão a segue. O vestido dela reluz como lâmina; a calça dele molda-se ao corpo.
As cordas de shibari deslizam por entre os dedos dela. Cada nó é um verso. Cada laçada, uma ordem. Sansão se deixa moldar, o corpo transformado em escultura viva, pendido, suspenso, rendido. O público observa, sem respirar.
Então o chicote corta o ar. A pele responde. Dor e prazer se misturam como prece. Ela o castiga com precisão e beleza. Ele vibra como instrumento afinado. Cada golpe é música. Cada gemido, oração.
O último estalo ecoa e se dissolve. Ela o solta devagar. O mundo parece prender o fôlego.
Talita se senta. Sansão, ainda marcado e pulsante, repousa diante dela. Então, sem ordem, apenas por instinto, começa a dançar. A música volta, lenta, grave e sensual. Ele se move com lentidão calculada, corpo colado ao dela, beijos que queimam o ar. A calça o molda, o cinto reluz. Ela observa. Ele provoca. A tensão entre os dois é pura poesia.
Ele se inclina, morde o ombro dela, o colo, o couro frio. Os lábios tocam o vestido e o corpo dela numa sequência de reverência e insubordinação. Quando ele a morde, suave e firme, o som que escapa dela é um suspiro de poder rendido.
Talita toca o cinto. Um gesto, um clique. O ferro se abre. Sansão desce, beijando-lhe as pernas até mostrar as presas e devolve a mordida, deixando-a embriagada de prazer.
O sangue se mistura. As velas tremulam. O público ali já não existia mais. E eu, espectro e cronista, sorrio. Na Mansão Dunsirn, o desejo é culto, e o poder, a mais refinada das carícias.




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