1931
- Robin Rowland

- 1 de dez.
- 11 min de leitura
Atualizado: há 6 dias
Anselmo
O ano de 1929 foi um dos mais iluminados que tive.
Morava em um duplex em Higienópolis bem espaçoso. Tinha meu próprio quarto, meus próprios bichinhos de pelúcia e queria muito ganhar uma televisão no meu quarto para assistir as minhas fitas de vídeo sozinha.
Meu pai vivia largado sofá contemplando varias fotos dele com minha mãe, quando jovens no parque Buenos Aires, bem perto do nosso condomínio. Ele sempre ficava olhando essas fotos impressas amarronzadas, como se pintadas em pingado velho. O ventilador de madeira, com luzes de vidro no formato de flores, rangia. Ninguém suportava aquele ranger, mas meu pai não queria reformar nada da casa deixada pelo pai dele.
Nunca conheci meu avô, mas aparentemente ele tinha dinheiro e deixou para meu pai o apartamento e para meu tio seus carros e um montante relevante de herança.
Herança essa que meu pai estava todos os dias afundando em bebidas caras. Garrafas verdes de rótulos dourados com alumínio, garrafas douradas com baleias desenhadas, às vezes com montanhas e aves, às vezes com letras japonesas. A sala de quase 60 metros quadrados ficava zoneada com embalagens de copos plásticos e embalagens de amendoim.
Os longos corredores só faziam os lamentos da madrugada dele ecoar, de forma que minha pequena irmã, Eunice, vinha correndo para meu quarto atrapalhar o meu sono. Ela tinha o sono leve e ele tinha o choro bem alto.
Sempre confortei Eunice nas minhas cobertas, um chorão já era o suficiente. Minha mãe havia fugido com o patrão de uma empresa de café em que trabalhara. Deixou meu pai quando estava grávida do novo integrante de sua nova família.
Saiu sem se despedir e sem divisão de bens, uma vez que o novo marido era ainda mais afortunado e potencialmente mais interessante que nosso pai. Ela viveria uma vida muito boa, de muitos luxos, mas não muito longa por conta de um câncer.
Mas ainda faltavam quatro anos para descobrirmos tudo isso.
Em 31, só sabíamos que ela tinha ido embora e que não voltaria mais, e tive que aprender a me portar de forma madura em casa, ao menos, emocionalmente.
Quando fiz onze anos, bem na manhã do meu aniversário, fui correndo para a sala e descobri meu pai embriagado no sofá de couro branco com uma moça loura de vestido vermelho que nunca mais apareceu. Aquilo me desestabilizou um pouco, ele nunca havia trazido estranhas para casa (um hábito que não duraria muito tempo) e quando ele me viu em choque, me mandou subir para o quarto e me arrumar para a escola.
Eu não estudava aos domingos.
Ainda assim, ele era meu pai, não tinha como ter esquecido a data do aniversário de sua filha mais velha.
Pouco depois, ouvi a porta da sala se fechando e fiquei deitada junto de minha irmã o resto da manhã. Achei que tinha feito uma coisa ruim, e que ele estava indo se resolver com aquela moça.
Mas o dia passou, e nada.
Esquentei o almoço no microondas, abracei minha irmã que me fez um cartão de aniversário com um desenho nosso e esperei na sala bagunçada.
Fiz minha lição de casa, assisti televisão.
Foi a primeira vez que fiquei acordada até meia noite.
Esperei meu pai voltar, talvez com uma surpresa. Ele poderia voltar com o maior urso de pelúcia da cidade e um bouquet de flores e me dizer que se arrependia de ter atrasado! Ele podia ligar a qualquer momento para o telefone da sala e me avisar que tinha uma surpresa enorme no carro. Pensei que ao menos ele me desejaria um silencioso ‘feliz aniversário’ em um surto de sobriedade.
Mas, nada aconteceu.
Quando o relógio cuco falso do quarto marcou meia noite e pude ver todos os ursinhos de pelúcia com seus sorrisos debochados e braços abertos rindo de mim, meu rosto ardeu como nunca. Estava esquecida, por meu próprio pai.
Ele preferiu suas antigas amantes Pindorama, Gray Goose e Absolute! Louras geladas e aparentemente, louras quentes também!
Detestei cada segundo daquela ausência, ainda esperançosa de que ele ouvisse meu choro silencioso no quarto e viesse até mim, como se estivesse no quarto ao lado, apenas fazendo uma piada de mau gosto ou uma surpresa complicada.
Ele nunca veio.
Me deixou sozinha no escuro do meu quarto, com um monte de sorrisos plásticos e abraços estofados de algodão sem alma. Todos os brinquedos pareciam debochar de mim, a pequena Elis que tinha casa com piscina, mas nenhuma mãe e agora, nenhum pai.
Quando olhei para o espelho no armário, pude ver meus olhos inchados e vermelhos. As mechas escuras do meu cabelo coladas na testa me fizeram perceber que meus olhos eram exatamente iguais aos dele, que quando chorava meu rosto enrugava da mesma maneira que o dele. E a dor de pensar nele, quando ele não conseguia nem se lembrar de mim doeu tanto, tanto, tanto.
Queria socar o espelho, mas parece que toda força do meu corpo havia sido drenada pelas horas de espera que nutri durante todo aquele dia desgraçado. E a sina final era saber que sempre que eu estivesse completamente miserável, meu rosto se tornaria como o dele.
De um chorão de merda.
Não me lembro de chorar depois daquele dia.
Meu pai nunca me deu parabéns pelo meu aniversário de onze anos.
Luíz Felipe
No dia seguinte de um dos meus piores aniversários, ao menos, o pior até aquele ano, sentia meus olhos ardendo, enquanto esperava o carro para me levar de volta para casa. Apertava as alças largas da minha mochila, não queria voltar para aquele lugar, mas não conhecia nenhum outro no qual eu pertencesse que não fosse meu quarto.
Como meu pai bebia cada vez mais, durante alguns anos, eu e minha irmã íamos de carona para o colégio.
Estava com um humor péssimo, briguei com todos os coleguinhas que ousaram falar comigo naquele dia e estava prestes a avançar em uma garota que fez um comentário espertinho sobre minhas olheiras. Mas assim que cheguei no pátio, me surpreendi com meu tio segurando um enorme pacote laranja com soldadinhos e com um pirulito preso.
– Tio!
Vestindo sempre blusas sociais de manga comprida e coletes escuros, meu tio, Luiz Felipe, abaixava os óculos escuros e me dava um sorriso quando me via na saída do colégio. Corri até ele para um abraço e pude sentir meus olhos ardendo novamente, não sei se já estava determinada a nunca mais chorar na frente de ninguém ou se meu estoque de lágrimas estava completamente vazio, mas o ressecamento foi a única coisa que senti nos olhos.
Ele me ergueu do chão e beijou minha testa.
– Morceguinha, por que você tá com essa cara chocha?
Não respondi.
Ele me olhou por mais um minuto, mas não fiz nenhum som. Não tinha palavras.
– Para você, feliz aniversário atrasado. – Continuou, estendendo o pacote grande.
Não pude conter meu sorriso. Tudo que meu pai não era, meu tio era. Ele dirigia vários carros coloridos diferentes, sempre se vestia bem e estava cheiroso, também nunca esquecia uma data comemorativa.
Até eu ter meu primeiro namorado, ele me dava um bombom recheado todo 12 de junho. Naquele aniversário o gesto valeu mais que tudo, mas não estava me sentindo bem e não pude agradecer com a costumeira doçura.
– Não gostou do ursinho?
– Não gosto mais de urso de pelúcia.
– Por que?
– Não sou mais criança.
Ele pegou um maço de cigarro e acendeu, assoprando a fumaça para cima.
– Você tem razão.
Olhei confusa para ele.
– Você já tem onze anos, não é nenhum bebezinho que brinca com ursos de pelúcia.
Ele tentou tirar o ursinho da minha mão, mas não deixei. Não queria devolver o ursinho, eu gostei dele, ele tinha um coletinho vinho e gravatinha borboleta que me lembrava meu tio, mesmo este nunca usando gravata alguma.
Ele deu outro trago.
– Sabe, você e eu vamos sair para almoçar em um lugar realmente legal.
– Aé?
– Sim, um restaurante. Um lugar de adulto.
– Por que é um lugar adulto?
– Porque é um lugar chique, e crianças não são chiques.
Não estava entendendo muito, mas a ideia de ir comer em um lugar chique me deixou animada. Segurei na mão do meu tio enquanto ele me levava até o carro estacionado. Ele abriu a porta para que eu pudesse me sentar no banco de trás.
Comemos em um restaurante elegante, pude tomar coca-cola em uma taça como se fosse uma bebida cara e comemos pratos diferentes. Ele comeu um coração de mignon com molho de sangue e uma farofa esquisita, eu comi carne de pato com batatinhas que apreciam bolinhas fritas e era uma delícia.
Na mesa tinha dois pares de garfo e faca, por que lugares chiques tem muitos talheres. Coloquei meu guardanapo no colo, brindamos em taças de coca-cola. Depois tomei sorvete de creme em uma tigela de vidro.
– Sabe, pais não podem ter filhos favoritos. Mas, os tios podem ter suas sobrinhas favoritas e você é a minha, Morceguinha. Você sempre vai ser minha número um.
Depois daquele aniversário ele passou a me dar bouquet de flores todo ano e fizemos a tradição de sair para almoçar em lugares caros. Foi meu primeiro contato com esse tipo de ambiente, mas nunca foi chato. Luíz Felipe manteve a promessa de estar lá por mim e manteve ela por anos de várias maneiras.
Foi com ele que provei minha primeira vodka, foi ele quem me ensinou a dirigir (bem, ele tentou) e foi dele que roubei meu primeiro maço de cigarro.
Mas por mais que fosse uma figura paterna bem mais competente que meu pai, conforme fui crescendo fui aprendendo que ele não era bem uma pessoa certa aos olhos da lei.
Rinha
Devia ter uns 16 anos quando meu tio me chamou para ver um rinha de cães. Na verdade, ele não me convidou com esse intuito, ele estava indo e eu estava para baixo, meu primeiro namorado tinha mudado de colégio e com isso terminado comigo. Nem gostava tanto assim dele, mas não gostei de ser descartada.
Duas semanas depois nem me lembraria do nome do garoto e até hoje não tenho certeza se era Danilo, Diego ou Daniel.
– Ninguém quer ficar sozinha depois de tomar um pé na bunda.
– Não tomei um pé na bunda, ele está indo para outro colégio e fazia sentido para a gente terminar.
– Se você está triste, você tomou um pé na bunda.
Ele jogou o cigarro meio fumado no chão e puxou um maço novo de Camel. Meu tio fumava três maços de cigarro vagabundo por dia, mas quando ia ver seus amigos, ao menos os que ele respeitava, fumava Camel.
– Me dá um cigarro? – Só depois que você souber segurar a bebida.
– Posso beber? – Comentei com uma pingada de esperança que devia ter disfarçado melhor.
Ele me olhos e canto de olho.
– Pode.
Minha primeira cerveja estava gelada, azeda e foi servida em um galpão abandonado, vindo de um isopor suspeito. Havia uma pequena multidão de homens de meia idade com camisas sociais baratas e imitações de relógios caros e algumas mulheres suadas com camisetas largas e cabelos presos em bonés.
O calor do local fez o refrescante da bebida amarga ser tolerável. Achei que teria maior aversão a álcool por conta do meu pai, mas o cheiro de cevada acabou sendo mais confortável que traumático, embora pelo status financeiro da minha família, esse fosse um hábito que eu só teria com meu tio.
Luiz Felipe apertou a mão de uns colegas, alguns que estenderam a hospitalidade a mim, mas num geral ao me perceber ao lado dele, olhavam receosos para meu tio.
Naquele dia pude ver um tipo de ostentação diferente. Os homens falavam em voz alta, enquanto fumavam e seguravam garrafas de champanhe, aguardavam as lutas e faziam suas apostas. Era a primeira vez que via tanto dinheiro vivo. Os maços enormes de notas azuis com pequenas variações de onças amareladas passavam de mão para mão. Fichas, boletas e muitas, muitas cédulas.
A informalidade dos acordos que firmavam. Estavam falando português, mas não entendia a colocação dos termos.
Isso me deixou fascinada.
Era claro entre aquelas pessoas, quem tinha mais, ou quem era mais respeitado. E senti um ciúme e orgulho do meu tio, ele era respeitado.
– Estávamos esperando você, Felipão, Felipasso. Coloquei 3 no Brutus e coloquei 15 no Corola, por você. Pronto para falir?
– Haroldo, seu cachorro velho, hoje eu tiro de você até a roupa do corpo.
Eles riam, apertavam um o ombro do outro, queria que apertassem minha mão daquela maneira, queria que me requisitassem assim. Nunca liguei para popularidade, mas a ideia de ser importante estava ganhando um formato visual claro na minha cabeça.
Em um cercado improvisado, de madeira áspera vagabunda, eram jogados cães músculos. Eles rosnavam, espumavam e assim que soltos de suas coleiras iam um para cima do outro. Os homens torciam, alguns riam, outros ficavam estagnados em ansiedade, movendo mais cédulas de mão para mão.
Os cachorros faziam, o que cachorros fazem: mordiam.
Não era a coisa mais interessante que eu já tinha visto, mas também não senti muita pena deles. Por um momento imaginei o cachorro felpudo de uma colega da minha turma, Carol, sendo completamente amassado nas mandíbulas daqueles animais.
A briga acabava em sangue, morte era opcional.
O que não vencesse, possivelmente seria sacrificado.
– Não são cachorros de estimação. – Meu tio me disse. – São instrumentos de entretenimento. Representam o dinheiro, influência e brutalidade do pessoal. É como canalizam a raiva e como tentam fingir que existe um controle. Esses bichos não podem ser totalmente controlados. Mas podem ser estimulados, manipulados.
Ele me estendeu uma segunda cerveja.
– Seria muito mais do caralho, se fossem eles mesmo de coleira de espinho se batendo até a morte, huh? Mas são covardes demais, então treinam cachorros, minto, pagam alguém para treinar cachorros para brigarem por eles.
– Por que? – Perguntei, aceitei a cerveja, minha roupa já estava totalmente colada no corpo de suor, meu cabelo colado no pescoço e testa.
Ele deu de ombros e tragou o Camel. O cheiro desse cigarro, ainda lembra meu tio. – Porque nós somos todos animais obcecados em jogo de poder.
Cães
Quando terminei com meu segundo namorado, agora um no qual eu soubesse o nome. Okay, serei mais sincera, eu estava saindo com a secretária do meu ex namorado, que ele achou que tinha alguma chance. Decidi experimentar coisas diferentes.
Estava na universidade de negócios, e como de costume, minhas notas eram excelentes. Já era hora de mudar meu ambiente e conhecer meu próprio submundo.
Um interesse levou a outro e logo descobri sobre casas de BDSM, casas noturnas com pessoas em látex, couro e jogos diferenciados. Mas foi o SM que me deu o estalo que me fez entender meu tio.
Quando vi pela primeira vez uma dominatrix mascarada, em batom vermelho, esticar um chicote de cavalo preto e com movimento certeiro acertar as costas de um rapaz vendado, com os pulsos amarrados e seminu.
O eco da voz doce dele, da respiração pesada, carregada de luxúria chamou minha atenção e me prendeu o olhar com um fascínio que até aquele momento eu não tinha explorado. Sexo era bom, mas as priminares de jogos de poder poderiam ser aplicadas a uma brincadeira muito, mas muito mais quente.
O rapaz se contorcia de dor e tesão, conforme a dominatrix não só o chicoteada, mas o degradava também.
“Isso, sua vadia”
Uma chicotada.
”geme para mim”
Outra chicotada.
E enfim, ele respondia, com voz trêmula: sim, Senhora.
Podia ver minha mão na dela, agarrando o rosto do rapaz vendado, quando ela o apertava e mandava ele dizer promessas de submissão, acompanhado de recompensas onde ele a fazia se sentir bem.
Meu corpo borbulhava de antecipação por aquele controle, aquele domínio. O estalo do chicote me abriu uma sede que nunca antes havia sido saciada. Então uma voz assertiva, em um tom doce veio até mim e perguntou:
– Gosta de domínio e submissão?
– Estou ficando interessada.
– Meu amigo achou você muito linda, se estiver desacompanhada, o que acha de experimentar?
A voz tinha uma luva de látex preta e uma palmatória em punho, estendi a mão e ela me deu o objeto.
– Tente fazer aquele ali ser colocado no lugar dele.
E me apontou um rapaz com os tornozelos amarrados e a boca amordaçada. Ele se segurava em uma estrutura que deixava sua bunda empinada, costas vulneráveis e pescoço apoiado.
Deixar minhas marcas no corpo de outra pessoa, essa ideia estava me enlouquecendo. Por um momento lembrei da descrição de poder do meu tio, sobre poder ser: realizar seus desejos sem hesitação. Não era uma observadora da violência alheia, era uma agente dessas ações.
E se fosse uma agente, que suas vítimas fossem submissas ao seu prazer.
O eco da palmatória me preencheu de adrenalina. Aquela era a entrada para um estilo de vida completamente novo. Onde ela adestraria seus cães, a sua maneira.


Comentários